domingo, 26 de setembro de 2010

Amor, pois que é palavra essencial

(Carlos Drummond de Andrade)

Amor – pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro e vulva.

Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?

O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.

Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?

Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.

E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós, além da prórpia vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a idéia de gozar está gozando.

E num sofrer de gozo entre palavras,
menos que isto, sons, arquejos, ais,
um só espasmo em nós atinge o climax:
é quando o amor morre de amor, divino.

Quantas vezes morremos um no outro,
no úmido subterrâneo da vagina,
nessa morte mais suave do que o sono:
a pausa dos sentidos, satisfeita.

Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
estendidos na cama, qual estátuas
vestidas de suor, agradecendo
o que a um deus acrescenta o amor terrestre.

Explicação

(Carlos Drummond de Andrade)

Meu verso é minha consolação.
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha-de-flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.

Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso. E meu verso me agrada.

Meu verso me agrada sempre...
Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota
mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota.
Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu pais, esta sombra mole, preguiçosa.
Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola...
saio desanimado.
Ah, ser filho de fazendeiro!
A beira do São Francisco, do Paraíba ou de qualquer córrcgo vagabundo,
é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de.
E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.
Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial da fazenda também era...
No elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.

Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices a maior é suspirar pela Europa.
A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro
e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente.
O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,
lê o seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?

One Art

(Bishop)


The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.


--Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.

Soneto

(Chico Buarque)

Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono

Com que mentira abriste meu segredo
De que romance antigo me roubaste
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo

Por que não me deixaste adormecida
E me indicaste o mar, com que navio
E me deixaste só, com que saída

Por que desceste ao meu porão sombrio
Com que direito me ensinaste a vida
Quando eu estava bem, morta de frio?

I carry your heart with me

(E.E. Cummings)

I carry your heart with me
(I carry it in my heart)
I am never without it
(Anywhere I go you go, my dear; and whatever is done by only me is your doing, my darling)

I fear

No fate
(For you are my fate, my sweet)
I want no world
(For beautiful you are my world, my true)

And it's you are whatever a moon has always meant
And whatever a sun will always sing is you

Here is the deepest secret nobody knows
(Here is the root of the root and the bud of the bud and the sky of the sky of a tree called life; which grows higher than the soul can hope or mind can hide)

And this is the wonder that's keeping the stars apart

I carry your heart (I carry it in my heart).

domingo, 19 de setembro de 2010

"Deus costuma usar a solidão para nos ensinar sobre a convivência. Às vezes,
usa a raiva para que possamos compreender o infinito valor da paz. Outras vezes
usa o tédio, quando quer nos mostrar a importância da aventura e do abandono.
Deus costuma usar o silêncio para nos ensinar sobre a responsabilidade do que
dizemos.
Às vezes usa o cansaço, para que possamos compreender o valor do despertar.
Outras vezes usa a doença, quando quer nos mostrar a importância da saúde.
Deus costuma usar o fogo, para nos ensinar a andar sobre a água.
Às vezes, usa a terra, para que possamos compreender o valor do ar. Outras
vezes usa a morte, quando quer nos mostrar a importância da vida".

(Fernando Pessoa)

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Fado Tropical

"Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo ( além da sífilis, é claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora.

(...)

Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto

Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto

Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa
Mas meu peito se desabotoa
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa"

(trecho "falado" na música Fado Tropical, Chico Buarque)

Lesões Incompatíveis Com A Vida

Texto de Angelica Liddell
Tradução de Alberto Augusto Miranda

Aos filhos que não vou ter.
Não quero ter filhos.
Não quero ir mais longe.
Sou uma epidemia de ressentimento
Não quero ter filhos.
É a minha maneira de protestar. O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo renuncia à fertilidade.
O meu corpo é o meu protesto contra a sociedade, contra a injustiça, contra o linchamento, contra a guerra.
O meu corpo é a crítica e o compromisso com a dor humana.
Quero que o meu corpo seja estéril como o meu sofrimento.
O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo é o meu pessimismo. Graças ao pessimismo posso fazer-me perguntas. Alguém tem de ficar em metade dos homens fazendo-se perguntas, alguém tem de ficar em metade da esperança fazendo-se perguntas. Alguém tem de ficar como um idiota. Alguém tem de ficar como excremento e fracassar definitivamente. A ausência de filhos ajuda-me a ser excremento e a fracassar. Os adultos saltam por cima do meu ventre agitando os seus filhos como bandeiras como se o mal tivesse desaparecido do mundo, como se a inteligência tivesse finalmente triunfado sobre o mundo, como se fossem insígnias de um mundo melhor. Não confio num futuro melhor. As famílias comportam-se com soberba, pensando que a sua prole vai ser diferente, que os seus filhos nunca irão trair como nós fomos traídos, que os seus filhos nunca danarão nem serão danados, que os reveses da vida sem dúvida serão menores e que os seus filhos jamais serão culpados seja do que for.
O meu corpo é o meu protesto contra as grandes esperanças dos pais, contra as grandes pretensões dos pais.
Não quero passar por esse estado de estupidez transitória.
Não quero que o meu ressentimento se interrompa.
Não quero deixar de pensar na injustiça.
Não seria justo para os excluídos que deixasse de pensar na injustiça, que deixasse de condenar os privilegiados.
Porém, não conheci nenhuma criança que se convertesse num bom adulto. As crianças não se convertem em bons adultos. Eu não sou uma boa adulta. A bondade não existe. Sou má, muito má.
Talvez essa seja a razão por que não quero ser mãe.
Talvez a nós, mulheres más, nos aconteça isso, não queremos ser mães.
Nós, as mulheres más, sem instinto maternal, pagamos o tributo de morrer sozinhas, podres, sem alegria, em frente ao televisor, em frente ao espanto, secas, rodeadas de moscas de diferentes tamanhos.
A nós, mulheres más, só nos pode acontecer a morte.
Acho bem.
Fui criança. Mas não me tornei uma boa adulta.
O papel do homem no mundo é absurdo. Navegamos de tara em tara
Quando me imagino a parir apenas consigo ver, assomando entre as minhas pernas, a cabeça grotesca de um monstro já fatigado pela imundície do universo, pelo inefável, pela mesquinhez.
O meu corpo é o meu protesto.
Não quero trazer nada ao mundo excepto o meu profundo horror pelo mundo. Depois dos desastres do século XX apenas posso sentir horror. Depois de tamanha exibição do mal, o homem já não pode redimir-se. Quem pode voltar a amar os homens? Quem pode voltar a cantar em louvor dos homens? Alguém disse que depois dos horrores do século XX não era possível continuar a escrever. A palavra tinha-se tornado absurda, insuficiente. Os filhos são como a palavra, insuficientes. Seria bom para a minha mente aceitar a insuficiência da palavra e do homem. Mas dentro de mim há um qualquer crocodilo que me impede de aceitar isso. Cada vez suporto menos a injustiça, cada vez suporto menos a maldade. O mundo está alicerçado na injustiça e no mal.
Apenas consigo protestar.
O meu corpo é o meu protesto.
Quero morrer sem ninguém, sem deixar nada para trás. É a minha maneira de me unir aos que foram exterminados, aos que sofreram sem limite.
Não quero esperança.
O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo é um exemplo para suicidas, um exemplo para assassinos, um exemplo para todos os que se desprezam a si próprios.
Meu maldito corpo.
Minha decisão anormal.
Chega uma altura em que a sociedade se excita, se impacienta e procria, procria porque sim, procria. Que motivos tem?
Pergunto-me: que motivos tem?
Porém, a minha decisão é anormal.
Perdão pela violência.
A minha violência verbal é a minha luta contra a violência real.
O meu corpo é o meu protesto.
O meu protesto contra os vestidos pré-mãmã.
O meu corpo, voluntariamente estéril, é o meu inconformismo.
O meu corpo é a minha falta de adaptação.
As grandes esperanças dos meus pais destruíram as minhas próprias esperanças.
O meu corpo é o meu protesto contra as grandes esperanças dos meus pais, contra as grandes e estúpidas esperanças do mundo.
O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo é a minha acção.
A minha decisão anormal é a minha acção.
Em resumo, a minha vida é a minha acção.
Só quero ser filha.
Comigo termina a tirania do sangue.
Não quero constituir família.
Nunca acreditaria numa instituição que é fomentada, elogiada, aclamada, inclusivamente premiada pelo poder. Não confio em todos esses governantes que se fazem fotografar com as famílias.
A fotografia de família está sempre em cima das secretárias dos presidentes, em moldura de prata, a moldura é caríssima, a família merece a moldura mais cara, o presidente merece a família mais bonita, mais sorridente, mais feliz e mais cara. A família é o mais importante. A família é o mais importante. Sem família ninguém alcança o poder. O poder e a família, sempre unidos. Repugna-me.
As fotos de família lembram-me os arrepiantes cromos paradisíacos que os padres te mostram ao mesmo tempo que te cospem orações nas orelhas.
A família e o poder.
A família e a religião.
Não posso confiar numa coisa imposta pelo poder. Não posso confiar numa coisa imposta pela religião.
Nem que fosse apenas por esse motivo devíamos negar-nos a ter filhos.
Céline disse: “ Quando alguém ama os grandes da terra, está pronto a ser convertido em carne para canhão. Pelo afecto se começa. Os que estão no alto apenas conseguem pensar no povo por interesse ou por sadismo”
Concordo.
Também disse: “Vivam os loucos e os cobardes!”
Também concordo.
Não me sinto capaz de agradar aos poderosos, aos privilegiados. Se lhes agrado estou a alimentar a obesidade e o conformismo de uma sociedade idiota, delicodoce.
É necessário que haja alguém que não queira ter filhos. É necessário para desestabilizar as consciências. É uma forma de fazer justiça.
O meu corpo é o meu protesto.
É a minha forma de fazer justiça.
O meu corpo é o meu protesto.
Não quero ter filhos.
Quero ser pobre.
Não ter filhos é uma maneira de ser pobre.
Os pobres são essas pessoas cuja morte não interessa a ninguém.
Essa é a morte que eu desejo.
Não quero ter filhos.
É uma forma de ser um pouco mais pobre.
Às vezes penso que não depende de mim.
Estou possessa de uma raiva inidentificável que me obriga a enlamear-me continuamente na dor.
De onde vem essa raiva?
A quem pertence a vontade do enfermo?
O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo protesta contra a minha geração.
A fraude da minha geração.
Criaram uma sociedade classista, orgulhosa, ambiciosa e brilhante
Com o suor das suas testas, brilhante.
Com o suor das suas testas, ambiciosa.
Com o suor das suas testas, orgulhosa.
Com o suor das suas testas, classista.
Apenas procuram a comodidade.
Imitam os pequenos ricos. Dizem o contrário, são muito progressistas, mas comportam-se como qualquer um da classe média.
Codiciosos, complacentes, comodistas, instalados.
Sim, reproduzem-se na comodidade.
E isso debilita as suas mentes.
As suas cabeças estão repletas de comodidade.
Pensam que as suas consciências são correctas, mas não o são. No fundo, a sua correcção é um tópico que lhes permite viver sem qualquer sentimento de culpa.
O meu corpo é o meu protesto.
Sou uma estúpida.
Sou aquela que se equivoca por pretender sentir-se perdedora e ridiculamente heróica. Acuso-me de petulância. Sou petulante por andar ao contrário do mundo. Ainda que talvez faça parte da sua inércia. Não gosto de pensar assim, mas a raiva obriga-me a isso.
Uma pobre ressentida com aspirações artísticas. Eis o que sou.
Não quero salvar-me.
Sou a pior. A pior.
Protesto com o meu corpo.
Sou um caixote de lixo cor-de-rosa.
A imundície da minha carne faz com que qualquer um que se aproxime se torne escrupuloso.
Estou consumida pela verdade.
A guerra envelhece-me
Observo a minha existência como se a minha existência fosse a de uma mosca.
Pertenço à fauna cadavérica.
Em que momento da decomposição apareço?
Há quantos dias está morto o cadáver?
O meu corpo é o protesto pelos cadáveres inocentes.
Não quero ter filhos.
Não quero mais funerais.
Quem é o responsável pela vontade de morrer de uma mulher?
A injustiça coloca espadas na cama da suicida.
Embora o meu coração tenha parado, o sangue continua a fluir pelo meu corpo para continuar a protestar.
O meu corpo é o meu protesto.
O meu corpo é a minha acção.
O meu corpo é a minha obra de arte.
A minha decisão é a minha obra de arte.
Não ter filhos é a minha obra de arte.
Não fazendo filhos, faço arte.
O cheiro a café misturado com o cheiro a peixe faz-me vomitar.
Relaciono esse cheiro com a maternidade.
E ao mesmo tempo relaciono-o com a morte.
E penso: na família tudo acontece no escuro. Não suportaria nem mais uma grama de hipocrisia.
Porque na família amamos mas também somos obrigados a amar.
Este facto origina relações tenebrosas, sem bases, que desembocam em camuflagens dolorosas.
Na família tudo acontece na escuridão.
O meu corpo é o meu protesto
Protesto contra a ausência de paixões.
Protesto contra a fraqueza e a sensatez.
Protesto contra o uso do dinheiro.
As famílias recém-constituídas trabalham para poderem comprar arcas frigoríficas maiores, carros maiores, férias mais caras porém mais insípidas.
As famílias trabalham para não perderem nem uma grama do prestígio social.
As famílias trabalham para não perderem nem uma grama de segurança.
Protesto contra o prestígio social e protesto contra a segurança.
Aqui está o meu corpo protestando, sem filhos.
As famílias trabalham arduamente para parecerem ficarem como os ricos.
Aspiram ao bem-estar total.
Em nome dos seus filhos aspiram ao bem-estar total, quer dizer, ao supérfluo.
Perderam o sentido de bem-estar.
O meu corpo protesta contra o bem-estar.
As famílias trabalham arduamente.
Aspiram à calma total.
Protesto contra a calma.
O meu corpo protesta contra a calma.
O bem-estar, a segurança, a calma.
Tudo o que os alisa.
Nada de paixões. Nada de excessos.
Trabalham para pagar o ginásio.
Para pagar a protecção enquanto trabalham.
Enquanto trabalham para pagar a protecção e o seu eterno descanso.
E o seu eterno sacrifício.
Não posso identificar-me com eles.
Não posso identificar-me com um plano de pensões.
Não.
A minha vida é patética e adolescente.
Sou uma merda.
Mas não quero ser como eles.
Tanto faz. Não é possível fazer marcha atrás.
A minha geração move-se em direcção à estabilidade, ao plano de pensões, ao restaurante caro, ao carrinho cheio de compras, move-se em direcção a um consumo sem limites.
Por detrás das suas carteiras são uma massa flácida e sem forma.
Eu não sei para onde estou a ir.
Em qualquer caso, não ter filhos dá-me força. A minha decisão dá-me força.
A minha geração move-se tanto que não tem tempo para pensar.
Utilizam quatro tópicos para pensar e vão para a cama. Tão seguros, tão estáveis.
O meu corpo protesta contra a estabilidade.
Há demasiados funcionários.
Protesto contra os funcionários.
E os funcionários protestam porque o salário não chega para comprarem um carro mais caro, um queijo mais caro, um restaurante mais caro, uns calçõezinhos mais caros, uma merda mais cara. Protestam para mudar os azulejos das paredes do quarto de banho. Protestam por isso, porque precisam de encher o carrinho de compras até à insuportabilidade.
O meu corpo protesta contra os funcionários.
A economia determina as relações afectivas.
A economia determina as minhas acções.
O meu corpo é a minha acção.
Não tenho medo da pobreza.
A minha economia determina o meu protesto.
É impossível uma relação com aqueles que nunca tiveram na vida consciência de ruína e de pobreza.
Impossível.
A ausência de consciência de ruína e de pobreza defrauda-me completamente.
Por isso protesto. O meu corpo é o meu protesto.
A pobreza é tão indesejável como a mediania.
A raiva faz-me delirar.
Que fazer para evitar esta raiva aqui dentro?
Só protesto.
O meu corpo é o meu protesto
O meu corpo é a minha acção.
A minha vida é a minha acção.
Não quero ter filhos.
Porquê?
Talvez por raiva, esta raiva, aqui dentro.
Está sempre prestes a começar uma guerra.
O mundo é maravilhoso.

Tabacaria

(Álvaro de Campos)

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens.
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu ,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo.
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando.
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
0 mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num paço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
0 seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena; Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
0 dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho, Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre uma coisa tão inútil como a outra ,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou á janela.

0 homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(0 Dono da Tabacaria chegou á porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da tabacaria sorriu.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O Ovo e a Galinha

O Ovo e a Galinha

(Clarice Lispector)

De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.
Olho o ovo com um só olhar. Imediatamente percebo que não se pode estar vendo um ovo. Ver o ovo nunca se mantêm no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto o ovo há três milênios. – No próprio instante de se ver o ovo ele é a lembrança de um ovo. – Só vê o ovo quem já o tiver visto. – Ao ver o ovo é tarde demais: ovo visto, ovo perdido. – Ver o ovo é a promessa de um dia chegar a ver o ovo. – Olhar curto e indivisível; se é que há pensamento; não há; há o ovo. – Olhar é o necessário instrumento que, depois de usado, jogarei fora. Ficarei com o ovo. – O ovo não tem um si-mesmo. Individualmente ele não existe.
Ver o ovo é impossível: o ovo é supervisível como há sons supersônicos. Ninguém é capaz de ver o ovo. O cão vê o ovo? Só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo. – Quando eu era antiga um ovo pousou no meu ombro. – O amor pelo ovo também não se sente. O amor pelo ovo é supersensível. A gente não sabe que ama o ovo. – Quando eu era antiga fui depositária do ovo e caminhei de leve para não entornar o silêncio do ovo. Quando morri, tiraram de mim o ovo com cuidado. Ainda estava vivo. – Só quem visse o mundo veria o ovo. Como o mundo o ovo é óbvio.
O ovo não existe mais. Como a luz de uma estrela já morta, o ovo propriamente dito não existe mais. – Você é perfeito, ovo. Você é branco. – A você dedico o começo. A você dedico a primeira vez.
Ao ovo dedico a nação chinesa.
O ovo é uma coisa suspensa. Nunca pousou. Quando pousa, não foi ele quem pousou. Foi uma coisa que ficou embaixo do ovo. – Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de não entendê-lo. Sendo impossível entendê-lo, sei que se eu o entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro. Entendê-lo não é o modo de vê-lo. – Jamais pensar no ovo é um modo de tê-lo visto. – Será que sei do ovo? É quase certo que sei. Assim: existo, logo sei. – O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito. – A Lua é habitada por ovos.
O ovo é uma exteriorização. Ter uma casca é dar-se.- O ovo desnuda a cozinha. Faz da mesa um plano inclinado. O ovo expõe. – Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome.
O ovo é a alma da galinha. A galinha desajeitada. O ovo certo. A galinha assustada. O ovo certo. Como um projétil parado. Pois ovo é ovo no espaço. Ovo sobre azul. – Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama outra coisa. – Não toco nele. A aura de meus dedos é que vê o ovo. Não toco nele – Mas dedicar-me à visão do ovo seria morrer para a vida mundana, e eu preciso da gema e da clara. – O ovo me vê. O ovo me idealiza? O ovo me medita? Não, o ovo apenas me vê. É isento da compreensão que fere. – O ovo nunca lutou. Ele é um dom. – O ovo é invisível a olho nu. De ovo a ovo chega-se a Deus, que é invisível a olho nu. – O ovo terá sido talvez um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. – O ovo é basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos ? Não. O ovo é originário da Macedônia. Lá foi calculado, fruto da mais penosa espontaneidade. Nas areias da Macedônia um homem com uma vara na mão desenhou-o. E depois apagou-o com o pé nu.
O ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. – O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. – O ovo por enquanto será sempre revolucionário. – Ele vive dentro da galinha para que não o chamem de branco. O ovo é branco mesmo. Mas não pode ser chamado de branco. Não porque isso faça mal a ele, mas as pessoas que chamam ovo de branco, essas pessoas morrem para a vida. Chamar de branco aquilo que é branco pode destruir a humanidade. Uma vez um homem foi acusado de ser o que ele era, e foi chamado de Aquele Homem. Não tinham mentido: Ele era. Mas até hoje ainda não nos recuperamos, uns após outros. A lei geral para continuarmos vivos: pode-se dizer “um rosto bonito”, mas quem disser “O rosto”, morre; por ter esgotado o assunto.
Com o tempo, o ovo se tornou um ovo de galinha. Não o é. Mas, adotado, usa-lhe o sobrenome. – Deve-se dizer “o ovo da galinha”. Se eu disser apenas “o ovo”, esgota-se o assunto, e o mundo fica nu. – Em relação ao ovo, o perigo é que se descubra o que se poderia chamar de beleza, isto é, sua veracidade. A veracidade do ovo não é verossímil. Se descobrirem, podem querer obrigá-lo a se tornar retangular. O perigo não é para o ovo, ele não se tornaria retangular. (Nossa garantia é que ele não pode: não poder é a grande força do ovo: sua grandiosidade vem da grandeza de não poder, que se irradia como um não querer.) Mas quem lutasse por torná-lo retangular estaria perdendo a própria vida. O ovo nos expõe, portanto, em perigo. Nossa vantagem é que o ovo é invisível. E quanto aos iniciados, os iniciados disfarçam o ovo.
Quanto ao corpo da galinha, o corpo da galinha é a maior prova de que o ovo não existe. Basta olhar para a galinha para se tornar óbvio que o ovo é impossível de existir.
E a galinha? O ovo é o grande sacrifício da galinha. O ovo é a cruz que a galinha carrega na vida. O ovo é o sonho inatingível da galinha. A galinha ama o ovo. Ela não sabe que existe o ovo. Se soubesse que tem em si mesma o ovo, perderia o estado de galinha. Ser galinha é a sobrevivência da galinha. Sobreviver é a salvação. Pois parece que viver não existe. Viver leva a morte. Então o que a galinha faz é estar permanentemente sobrevivendo. Sobreviver chama-se manter luta contra a vida que é mortal. Ser galinha é isso. A galinha tem o ar constrangido.
É necessário que a galinha não saiba que tem um ovo. Senão ela se salvaria como galinha, o que também não é garantido, mas perderia o ovo. Então ela não sabe. Para que o ovo use a galinha é que a galinha existe. Ela era só para se cumprir, mas gostou. O desarvoramento da galinha vem disso: gostar não fazia parte de nascer. Gostar de estar vivo dói. – Quanto a quem veio antes, foi o ovo que achou a galinha. A galinha não foi sequer chamada. A galinha é diretamente uma escolhida. – A galinha vive como em sonho. Não tem senso de realidade. Todo o susto da galinha é porque estão sempre interrompendo o seu devaneio. A galinha é um grande sono. – A galinha sofre de um mal desconhecido. O mal desconhecido é o ovo. – Ela não sabe se explicar: “ sei que o erro está em mim mesma”, ela chama de erro a vida, “não sei mais o que sinto”, etc.
“Etc., etc., etc.,” é o que cacareja o dia inteiro a galinha. A galinha tem muita vida interior. Para falar a verdade a galinha só tem mesmo é vida interior. A nossa visão de sua vida interior é o que chamamos de “galinha”. A vida interior na galinha consiste em agir como se entendesse. Qualquer ameaça e ela grita em escândalo feito uma doida. Tudo isso para que o ovo não se quebre dentro dela. Ovo que se quebra dentro de galinha é como sangue.
A galinha olha o horizonte. Como se da linha do horizonte é que viesse vindo um ovo. Fora de ser um meio de transporte para o ovo, a galinha é tonta, desocupada e míope. Como poderia a galinha se entender se ela é a contradição de um ovo? O ovo ainda é o mesmo que se originou na Macedônia. A galinha é sempre tragédia mais moderna. Está sempre inutilmente a par. E continua sendo redesenhada. Ainda não se achou a forma mais adequada para uma galinha. Enquanto meu vizinho atende ao telefone ele redesenha com lápis distraído a galinha. Mas para a galinha não há jeito: está na sua condição não servir a si própria. Sendo, porém, o seu destino mais importante que ela, e sendo o seu destino o ovo, a sua vida pessoal não nos interessa.
Dentro de si a galinha não reconhece o ovo, mas fora de si também não o reconhece. Quando a galinha vê o ovo pensa que está lidando com uma coisa impossível. É com o coração batendo, com o coração batendo tanto, ela não o reconhece.
De repente olho o ovo na cozinha e vejo nele a comida. Não o reconheço, e meu coração bate. A metamorfose está se fazendo em mim: começo a não poder mais enxergar o ovo. Fora de cada ovo particular, fora de cada ovo que se come, o ovo não existe. Já não consigo mais crer num ovo. Estou cada vez mais sem força de acreditar, estou morrendo, adeus, olhei demais um ovo e ele me foi adormecendo.
A galinha não queria sacrificar a sua vida. A que optou por querer ser “feliz”. A que não percebia que, se passasse a vida desenhando dentro de si como numa iluminura o ovo, ela estaria servindo. A que não sabia perder-se a si mesma. A que pensou que tinha penas de galinha para se cobrir por possuir pele preciosa, sem entender que as penas eram exclusivamente para suavizar, a travessia ao carregar o ovo, porque o sofrimento intenso poderia prejudicar o ovo. A que pensou que o prazer lhe era um dom, sem perceber que era para que ela se distraísse totalmente enquanto o ovo se faria. A que não sabia que “eu” é apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada. A que pensou que “eu” significa ter um si-mesmo. As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um “eu” sem trégua. Nelas o “eu” é tão constante que elas já não podem mais pronunciar a palavra “ovo”. Mas, quem sabe, era disso mesmo que o ovo precisava. Pois se elas não estivessem tão distraídas, se prestassem atenção à grande vida que se faz dentro delas, atrapalhariam o ovo.
Comecei a falar da galinha e há muito já não estou falando mais da galinha. Mas ainda estou falando do ovo.
E eis que não entendo o ovo. Só entendo o ovo quebrado: quebro-o na frigideira. É deste modo indireto que me ofereço à existência do ovo: meu sacrifício é reduzir-me à minha própria vida pessoal. Fiz do meu prazer e da minha dor o meu destino disfarçado. E ter apenas a própria vida é, para quem viu o ovo, um sacrifício. Como aqueles que, no convento, varrem o chão e lavam a roupa, servindo sem a glória de função maior, meu trabalho é o de viver os meus prazeres e as minhas dores. É necessário que eu tenha a modéstia de viver.
Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe a casca e forma. E a partir deste instante exato nunca existiu um ovo. É absolutamente indispensável que eu seja uma ocupada e uma distraída. Sou indispensavelmente um dos que renegam. Faço parte da maçonaria dos que viram uma vez o ovo e o renegam como forma de protegê-lo. Somos os que se abstêm de destruir, e nisso se consomem. Nós, agentes disfarçados e distribuídos pelas funções menos reveladoras, nós às vezes nos reconhecemos. A um certo modo de olhar, há um jeito de dar a mão, nós nos reconhecemos e a isto chamamos de amor. E então, não é necessário o disfarce: embora não se fale, também não se mente, embora não se diga a verdade, também não é necessário dissimular. Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente.
A todos os agentes são dadas muitas vantagens para que o ovo se faça. Não é o caso de se ter inveja pois, inclusive algumas das condições, piores do que as dos outros, são apenas as condições ideais para o ovo. Quanto ao prazer dos agentes, eles também o recebem sem orgulho. Austeramente vivem todos os prazeres: inclusive é o nosso sacrifício para que o ovo se faça. Já nos foi imposta, inclusive uma natureza adequada a muito prazer. O que facilita. Pelo menos torna menos penoso o prazer.
Há casos de agentes que se suicidam: acham insuficientes as pouquíssimas instruções recebidas e se sentem sem apoio. Houve o caso do agente que revelou publicamente ser agente porque lhe foi intolerável não ser compreendido, e ele não suportava mais não ter o respeito alheio: morreu atropelado quando saía de um restaurante. Houve um outro que nem precisou ser eliminado: ele próprio se consumiu lentamente na sua revolta, sua revolta veio quando ele descobriu que as duas ou três instruções recebidas não incluíam nenhuma explicação. Houve outro também eliminado, porque achava que “a verdade deve ser corajosamente dita”, e começou em primeiro lugar a procurá-la; dele se disse que morreu em nome da verdade com sua inocência; sua aparente coragem era tolice, e era ingênuo o seu desejo de lealdade, ele compreendera que ser leal não é coisa limpa, ser leal é ser desleal para com todo o resto. Esses casos extremos de morte não são por crueldade. É que há um trabalho, digamos cósmico, a ser feito, e os casos individuais infelizmente não podem ser levados em consideração. Para os que sucumbem e se tornam individuais é que existem as instituições, a caridade, a compreensão que não discrimina motivos, a nossa vida humana enfim.
Os ovos estalam na frigideira, e mergulhada no sonho preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da realidade, grito pelas crianças que brotam de várias camas, arrastam cadeiras e comem, e o trabalho do dia amanhecido começa, gritado e rido e comido, clara e gema, alegria entre brigas, dia que é o nosso sal e nós somos o sal do dia, viver é extremamente tolerável, viver ocupa e distrai, viver faz rir.
E me faz sorrir no meu mistério. O meu mistério é que eu ser apenas um meio, e não um fim, tem-me dado a mais maliciosa das liberdades: não sou boba e aproveito. Inclusive, faço um mal aos outros que, francamente. O falso emprego que me deram para disfarçar a minha verdadeira função, pois aproveito o falso emprego e dele faço o meu verdadeiro; inclusive o dinheiro que me dão como diária para facilitar a minha vida de modo a que o ovo se faça, pois esse dinheiro eu tenho usado para outros fins, desvio de verba, ultimamente comprei ações na Brahma e estou rica. A isso tudo ainda chamo de ter a necessária modéstia de viver. E também o tempo que me deram, e que nos dão apenas para que no ócio honrado o ovo se faça, pois tenho usado esse tempo para prazeres ilícitos e dores ilícitas, inteiramente esquecida do ovo. Esta é a minha simplicidade.
Ou é isso mesmo que eles querem que me aconteça, exatamente para que o ovo se cumpra? É liberdade ou estou sendo mandada? Pois venho notando que tudo que é erro meu tem sido aproveitado. Minha revolta é que para eles eu não sou nada, eu sou apenas preciosa: eles cuidam de mim segundo por segundo, com a mais absoluta falta de amor; sou apenas preciosa. Com o dinheiro que me dão, ando ultimamente bebendo. Abuso de confiança? Mas é que ninguém sabe como se sente por dentro aquele cujo emprego consiste em fingir que está traindo, e que termina acreditando na própria traição. Cujo emprego consiste em diariamente esquecer. Aquele de quem é exigida a aparente desonra. Nem meu espelho reflete mais um rosto que seja meu. Ou sou um agente, ou é a traição mesmo.
Mas durmo o sono dos justos por saber que minha vida fútil não atrapalha a marcha do grande tempo. Pelo contrário: parece que é exigido de mim que eu seja extremamente fútil, é exigido de mim inclusive que eu durma como justo. Eles me querem preocupada e distraída, e não lhes importa como. Pois, com minha atenção errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o que se está fazendo através de mim. É que eu própria, eu propriamente dita, só tenho mesmo servido para atrapalhar. O que me revela que talvez eu seja um agente é a idéia de que meu destino me ultrapassa: pelo menos isso eles tiveram mesmo que me deixar adivinhar, eu era daqueles que fariam mal o trabalho se ao menos não adivinhassem um pouco; fizeram-me esquecer o que me deixaram adivinhar, mas vagamente ficou-me a noção de que meu destino me ultrapassa, e de que sou instrumento do trabalho deles. Mas de qualquer modo era só instrumento que eu poderia ser, pois o trabalho não poderia ser mesmo meu. Já experimentei me estabelecer por conta própria e não deu certo; ficou-me até hoje essa mão trêmula. Tivesse eu insistido um pouco mais e teria perdido para sempre a saúde. Desde então, desde essa malograda experiência, procuro raciocinar desse modo: que já me foi dado muito, que eles já me concederam tudo o que pode ser concedido; e que os outros agentes, muito superiores a mim, também trabalharam apenas para o que não sabiam. E com as mesmas pouquíssimas instruções. Já me foi dado muito; isto, por exemplo: uma vez ou outra, com o coração batendo pelo privilégio, eu pelo menos sei que não estou reconhecendo! Com o coração batendo de emoção, eu pelo menos não compreendo! Com o coração batendo de confiança, eu pelo menos não sei.
Mas e o ovo? Este é um dos subterfúgios deles: enquanto eu falava sobre o ovo, eu tinha esquecido do ovo. “Falai, falai”, instruíram-me eles. E o ovo fica inteiramente protegido por tantas palavras. Falai muito, é uma das instruções, estou tão cansada.
Por devoção ao ovo, eu o esqueci. Meu necessário esquecimento. Meu interesseiro esquecimento. Pois o ovo é um esquivo. Diante de minha adoração possessiva ele poderia retrair-se e nunca mais voltar. Mas se ele for esquecido. Se eu fizer o sacrifício de esquecê-lo. Se o ovo for impossível. Então – livre, delicado, sem mensagem alguma para mim – talvez uma vez ainda ele se locomova do espaço até esta janela que desde sempre deixei aberta. E de madrugada baixe no nosso edifício. Sereno até a cozinha. Iluminando-a de minha palidez.